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Envelhecer juntas 
por Paola Barreto

Conheci Denise Agassi em 2012, em Belo Horizonte, no Festival Vivo arte.mov. Foi rápido o modo como conectamos nossas antenas, captando, uma da outra, as muitas frequências em comum. Nossa conversa atravessou a última década e nos levou a percorrer caminhos que se cruzaram algumas vezes, no interesse pelas formas expandidas do cinema como meio de conjurar imagens, sons e ideais, como ritual ou pajelança. Foi assim quando ativamos a plataforma de net arte midiamagia.net para projetar fantasmagorias nos extintos Cine Art-Palácio e Cine Piratininga, em São Paulo, com o Cine Fantasma. Mas não apenas os interesses de pesquisa em artemídia nos aproximaram; também o marrom da pele, o sorriso aberto, o corpo esguio, os olhos vivos atrás de divertidos óculos. Desde então, poucas não foram as vezes que nos perguntaram se éramos irmãs, e inventamos essa brincadeira de nos tratar por “siamesas”. Recebo, assim, o convite para apresentar uma irmã, com quem divido um legado ancestral, no qual me espelho, me transformo e envelheço. 

É em mais uma encruzilhada de caminhos que se bifurcam que abro este livro, como quem abre uma caixa de ferramentas para empreender uma viagem aos arquivos do próprio corpo e da própria memória. O interesse de Agassi pelas dinâmicas da comunicação em rede e os modos como percepção e experiência podem ser alteradas através de processos de mediação levam sua pesquisa para além da tecnologia, ou talvez fosse mais interessante pensar que ela leva a tecnologia de volta à sua lama originária: a magia, a alquimia, as práticas de transformação da matéria, as fronteiras da materialidade física. É assim que sua pesquisa atravessa as infraestruturas da internet e seus algoritmos para chegar às conexões sutis da geometria sagrada, ao fazer respirar, juntos, corpo, mente, estados liminares. Essa espécie de névoa é o que vai soprar o caminho de Agassi pelas veredas das redes energéticas do corpo.

Sempre entendi que o seu trabalho tecnológico – ou seria midiamágico? – é também um trabalho de cura, trabalho espiritual que traz à tona aquilo que se encontra latente, não manifesto, e pode ser expurgado através do encadeamento de imagens, sons, palavras. É como se as operações da net arte de Denise se tornassem medicina, em um atravessamento para alguns improvável, para nós muito natural, entre tecnologia e espiritualidade. Um trabalho que articula práticas de memória e arquivamento em busca da criação de dispositivos capazes de estabelecer conexões intempestivas, preenchendo lacunas e conversando com fantasmas de muitas ordens, que nos assombram subterraneamente neste plano de existência. 

Através de suas acoplagens tecnoestéticas, Agassi vai deflagrando escritas automáticas. As linhas de código se tornam as linhas de fuga de reinos mutantes, onde, sem deixar de existir, um se converte no outro, guardando a memória do anterior. Se o seu trabalho sempre foi sobre o desenvolvimento de dispositivos para a criação de experiências, chegamos ao ponto em que essa premissa se sofistica de maneira a entrelaçar o conhecimento sobre ervas, banhos, dietas, terapias sonoras, cores, cristais, sonhos e meditação, esculpindo, através de uma prática medicinal, um novo corpomídia.

É desse modo que este livro nos convida a pensar a produção artística como uma prática sanadora, enaltecendo o caráter multidimensional da experiência estética. Por meio de um conjunto de práticas que incluem a escrita-desenho (caligrafia ideográfica terapêutica), a concepção e confecção da Boneca Tiān, as práticas meditativas e a respiração consciente, desenvolve-se um processo de autoconhecimento e escuta de si, com a regulação e o equilíbrio dos fluxos energéticos e orgânicos. 

Ao assumir a força do desenho como gesto que performa uma escrita que traduz um conhecimento de si, o corpo fala; corpomídia que armazena, processa e transmite sensações ligadas ao sangue, aos rins, ao fígado, aos demais órgãos. Vai sendo, assim, tecida uma trança delicada e forte, como uma teia de aranha na qual a vida, o indivíduo, as forças da natureza e a morte estão relacionados ao funcionamento do cosmo. As imagens produzidas nesse contexto se colocam efetivamente como formas sobreviventes, geradas a partir de práticas de (auto) cuidado e formas de investigação de si. Um terreno onde o espectador não é mais um interator, mas um paciente, como Lygia Clark também denomina aqueles de quem trata com seus objetos relacionais.

Além da conexão imediata com a obra tardia de Lygia, podemos também dizer que o trabalho de Agassi se inscreve na esteira da tradição das bonecas antropomorfas, observadas em diferentes culturas do conhecimento, tanto no Oriente como no Ocidente, e em momentos distintos da história. Mesmo nas genealogias estabelecidas contemporaneamente para se pensar corpos híbridos, ciborgues de carbono e silício, traçamos caminhos que nos conduzem aos autômatos produzidos pelo mundo árabe ou durante o Renascimento. Trata-se mais uma vez do desejo de dar forma a criaturas feitas à nossa imagem e semelhança, expressando poderes sobrenaturais e capacidades de comunicação com o desconhecido, a exemplo de Chuckie, o boneco sensível às variações de campos eletromagnéticos que desenvolvi em meu processo de doutorado, uma espécie de primo da Boneca Tiān de Denise, em mais uma espiral do tempo que nos une. Com esse boneco, sintonizei frequências de nosso espaço hertziano, invisíveis a nossos olhos nus. Como um brinquedo filosófico, ele se tornou meu companheiro de pesquisa, o dispositivo lúdico por meio do qual ouvi falarem fantasmas, produzindo estímulos para a escrita e a invenção, como em uma brincadeira de criança. Todos sabemos o quanto a relação com bonecos tende a ser entendida como de ordem primitiva, seja por estarem associados aos jogos da infância, seja por se fazerem presentes em práticas rituais categorizadas como fetichistas por uma perspectiva colonial. O fato é que, através da relação com os bonecos, entendida nessa dimensão mediúnica, da abertura de canal de comunicação consigo mesmo, com o mundo, com a vida e com a morte, pode-se atingir uma experiência sublime, de transubjetivação. O trabalho de Denise carrega em si um pouco de toda essa longa e multifacetada história de pensar e explorar possibilidades da ação concreta de transformação de si por meio de um outro – personificado na Boneca.

A Boneca Tiān de Agassi não é um robô, nem um autômato, é um meio, ou um medium, através do qual o paciente fala. Trata-se, portanto, de um objeto relacional, construído com a finalidade de encarnar, no plano físico e antropomorfo, a experiência dos pacientes sobre o processo de envelhecer. Voltar-se para o envelhecimento e, por conseguinte, para a proximidade com a morte, é, ao mesmo tempo, tomar um caminho assertivo em direção à vida e ao que nos mantém vivos.  

Com o passar dos anos que nos fazem avançar em direção ao fim, assistimos aos nossos corpos enfrentando seus limites, desgastando-se, fraturando-se, produzindo dores, enrijecimento. Envelhecer com saúde é a grande questão, uma vez que, quem fica vivo, envelhece. Cultuar a "Boa Morte”, como se diz e se faz no Recôncavo Baiano, é cuidar para que o tempo que passa e a vida que transcorre nos tragam saúde, e não doença. É ter serenidade para fazer o caminho de retornar à poeira cósmica deste mundo da melhor maneira possível.

Dez anos se passaram desde que cruzei Denise neste mundo. Sou grata por tudo o que aprendi e aprendo com ela, pelo que partilhamos em comum e pelo que nos faz também diferentes. Espero que aqueles que tiverem olhos para ler e ouvidos para escutar possam aprender também e encontrar aqui seus próprios ecos e reflexos, construindo, na calma, sua própria trilha. Jovens envelhecendo e velhos se tornando leves como crianças, nesse movimento no qual o fim é também propósito. Zará Tempo!

 

Paola Barreto  

Artista, pesquisadora e professora

aka Dr. Fantasma

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