Escrita-desenho e a Boneca Tiān
Contribuições artísticas para a ancianidade
por Denise Agassi [1]
O traço dos idosos marca o essencial, por isso, com o tempo, torna-se mais leve, sutil e autêntico, devendo ser estimulado e observado para tentarmos identificar o que o pincel nos diz através das mãos. José Luis Padilla Corral
Ao entrarmos na maioria das Instituições de Longa Permanência para Idosos (ILPs), encontramos na sala principal as poltronas ao redor da televisão. Muitos tinham um histórico de guerras, são imigrantes e viveram profundas transformações sociais, e nesta etapa da vida, por não serem produtivos economicamente e ainda darem despesas e preocupações para suas famílias, sentem-se como um fardo e possuem a errônea ideia de que já não servem para nada.
Alguns residentes já não enxergam bem, outros escutam pouco, mas ainda assim querem a TV ligada. Cochilam, despertam e ela segue ali, presente, sobrepondo-se aos gemidos, preenchendo o vazio e a possibilidade de silêncio. Talvez por isso ela esteja em todos os cômodos transmitindo os programas tão familiares da TV aberta, que mostram as maravilhas e os absurdos do mundo lá fora. E quando alguém morre… silêncio… nada se comenta, porque a morte é um tabu nesses lugares.
Em locais como esses, conforme relata o Grupo de Inspiración Femenina del Uruguay da Escuela Neijing, as pessoas vivem em confinamento e se sentem “abandonadas”; alguns estão conscientes de sua deterioração, pulsam, anseiam ou temem “o fim” inexorável. Elas têm a sensação de perda ou de que “algo está faltando”, pois foram privados também do “lugar, sua casa”, referência de toda uma vida. A queixa é a forma usual de expressão, muitas vezes como maneira de chamar a atenção de alguém, pois vivem isolados, desconfiados e dopados com medicação e acabam criando “seu mundo” (AGUIAR; BARRIOS; MAGNOU, 2017, p. 137).[2]
Em muitos lugares, a atividade artística começa quando o orientador desliga o aparelho de TV para ser notado, pois as aulas de artes são realizadas nessas mesmas salas, com o orientador de pé no centro, ou melhor, exatamente na frente da televisão, único espaço possível onde todos já estão ali e não precisam se deslocar. A atividade é transmitida entre as conversas e o fluxo dos visitantes e funcionários, que parecem não se importar com a aula que está acontecendo ali.
As ações nos setores público, privado e da sociedade civil acabam privilegiando as necessidades básicas (comer e dormir), fisiológicas e de segurança, em detrimento daquelas de relacionamento, estima e realização pessoal (criatividade e espontaneidade). Como parte desta sociedade, os ILPIs seguem a mesma lógica, investindo mais na higiene, acomodação, alimentação e menos na qualidade das atividades socioculturais.
As Instituições de Longa Permanência para Idosos têm caráter residencial e incluem os asilos e as casas de repouso destinadas ao acolhimento de idosos saudáveis, com autonomia, mas que eventualmente precisam de ajuda para se alimentar ou tomar banho, por exemplo. As clínicas geriátricas são para idosos que precisam de cuidados médicos constantes, medicação e assistência à saúde, pois já se encontram com mais dependências, em fase acamada ou com pouca mobilidade. As pessoas que estão nessas casas possuem diferentes enfermidades, como Alzheimer, Parkinson, demência senil, recuperação pós-AVC, entre outras menos frequentes. Os sentidos também apresentam sinais de perda: de audição, visão e fala, bem como limitações motoras e cognitivas.
A poltrona é o local onde permanecem boa parte do tempo, mesmo sendo capazes de saírem delas. Ao corpo do idoso é atribuído uma conduta, geralmente sem tônus, lenta, curvada, sem expressão, e existe também um receio geral de que o idoso sofra uma queda ao tentar se locomover. Sabemos, contudo, que o corpo é uma construção cultural geralmente controlada e que envelhecimento não é sinônimo de imobilidade e descorporificação. A imobilidade e a mobilidade são construídas socialmente em qualquer idade. Por mais que sejamos capazes de nos expressar muito mais e melhor, a tendência é nos fixarmos em formatos mais ou menos regulares e socialmente aceitos. Acordamos, comemos, nos comunicamos sempre da mesma maneira. Nos mecanizamos física e sensivelmente em nossa maneira de responder ao mundo. Isso causa sofrimento, estagnação e incapacidade de transformação. No envelhecimento, não é diferente, observa Yara Toscano[3] a partir das experiências de teatro com grupo de idosos em moradias assistidas.
O corpo em processo de envelhecimento é alijado de um espaço social; seu lugar é na falta de movimento, de expressão e é representado pela doença e por outros problemas relacionados a limitações e ritmos. O idoso costuma ocupar o espaço da pena, da caridade, e sua voz é editada pelos mais jovens. Sua produtividade e agilidade vão em desencontro ao que a sociedade reconhece como lugar de sucesso. Essa violência sutil vai minando a chance de reinvenção e prazer. A sexualidade, principalmente a feminina, é aspecto pouco mencionado em pesquisas sobre essa faixa etária e colocada “embaixo do tapete” em ILPIs. A falta de memória é supervalorizada em detrimento da memória que existe – e a que realmente importa. O delírio é subjugado, quando pode ser fonte de relação, expressão e criação, como ressalta Yara Toscano.
Vale ressaltar que, no Brasil, de acordo com a Declaração de Friburgo[4], arte e cultura não são mercadorias de consumo ou entretenimento, mas a expressão da nossa humanidade, e é isso que precisamos vivenciar em todos os momentos da vida como elemento essencial, e não secundário. Por isso, as casas precisam investir em atividades de garantia de direitos, preservação da identidade, promoção de ambiência acolhedora, integração, produção e fruição de arte e cultura, convivência com a família, comunidade e outros grupos etários.
O artigo 50 do Estatuto do Idoso (BRASIL, 2003, n.p) prevê que “constituem obrigações das entidades de atendimento: […] IX – promover atividades educacionais, esportivas, culturais e de lazer.” O Estatuto é uma conquista na direção da garantia de direitos dos idosos, mas, como toda diretriz ou legislação, sua implementação é fundamental para que o direito e a qualidade das atividades que devem ser promovidas sejam garantidos. As regras estabelecidas no Estatuto do Idoso já existem, o que não existe é uma fiscalização adequada para o cumprimento delas.
As regras para os profissionais que trabalham com terapias artísticas nesses lugares também precisam ser regulamentadas pela legislação para garantir condições dignas para o profissional. O trabalho de um artista ou de um arte-terapeuta muitas vezes é informal e precário. Em muitos casos, não há contrato de trabalho, qualquer vínculo empregatício ou emissão de nota fiscal, estando mais próximo de uma atividade voluntária ou um passatempo, e não de um trabalho médico ou terapêutico especializado.
Atualmente, surgem cada vez mais produtos e serviços voltados para o público acima dos 60 anos. Esses projetos valorizam a qualidade de vida, tiram do foco os problemas de saúde e proporcionam um convívio social. São propostas que não estão vinculadas a um estereótipo que subestima a capacidade dos idosos por não responderem ao esperado. Por isso, é necessário criar espaços e atividades adequados para este público não viver sozinho ou à margem da sociedade.
No dicionário Michaelis, ancião refere-se: idoso, longevo, velho ou, ainda, pessoa digna de veneração por ter idade avançada; respeitável. Outros adjetivos que podemos encontrar nesse mesmo dicionário é: fora de moda, anacrônico, obsoleto, superado. Já nas comunidades tradicionais e povos originários, os anciãos são aqueles que guardam toda consciência do grupo, conhecem os processos cotidianos, sabem como as coisas se inter-relacionam, por isso estão em condições de aconselhar com sabedoria, no sentido de orientar as pessoas sobre o que fazer com o seu infinito potencial, e não somente determinar regras e dogmas a partir dos erros do passado. As crianças Krenak, por exemplo, anseiam por ser antigas, valorizam os velhos e não veem a velhice como uma ameaça, mas como um lugar almejado, de conhecimento (KRENAK, 2022, p. 116-117).
As práticas artísticas destinadas aos idosos que dialogam com as novas formas de encarar os processos de envelhecimento, criando modos de estarem juntos e integrados à sociedade. Muitas pessoas que passam pelo processo de envelhecimento acabam se isolando, ficam com medo de sair de casa, têm vergonha de si mesmo ou, ainda, estão passando por processos de luto, se sentem desamparadas, limitadas, e consequentemente, acabam adoecendo. Conforme ressalta o Dr. Padilla, a velhice não significa enfermidade, essa ideia é uma montagem vil e cruel de um sistema fracassado que culpa o enfermo ao invés de assumir os seus próprios erros e disfunções.
Idoso significa idoso, assim como jovem significa jovem, adulto significa adulto. Idoso não significa enfermidade, e sim, sinal de mais idade, significa outro ritmo ou fase da vida. Mas a criança e o adulto podem ficar doentes e o idoso deve estar enfermo. […] Por isso mesmo, e sobretudo, é necessário perceber que essa é uma fase em que se anda devagar, se olha, se calcula, se é mais preciso, não se gasta energia inutilmente, faz-se somente o justo e o necessário! (CORRAL, 2002, p. 65)
Através de projetos artísticos voltados para o público idoso podemos ver como as diversas formas de expressão têm impacto positivo na vida dessas pessoas, pois a arte tem a capacidade de promover a sociabilização, a reflexão sobre o envelhecimento, o desenvolvimento de novas habilidades e a integração com as demais gerações e com a sociedade. Além disso, pode despertar o potencial interior de cada um em qualquer idade ou fase da vida. As atividades podem ser muito diversificadas pois, cada linguagem artística pode atuar de modos distintos, como por exemplo: o design com a valorização dos saberes manuais tradicionais; a moda cuidando de aspectos relacionados à autoimagem e autoestima; a música e o teatro resgatando histórias e memórias; a dança e as atividades corporais trabalhando os movimentos e o bem-estar; e a tecnologia atualizando as possibilidades de participação e estabelecendo relações em rede.
O processo de envelhecimento é uma questão de saúde pública, por isso devemos ter como objetivo investir a melhoria desses serviços. Precisamos promover mais debates e iniciativas para superar os desafios, suprir os recursos que ainda são muito precários e enfrentar os desmontes das políticas públicas daquilo que já foi conquistado ao longo da história.
É possível chegar à idade avançada sem problemas de saúde, desde que, ao longo da vida, sigamos nos adaptando e cuidando desses processos que podem nos adoecer. Muitas vezes isso vai contra todo um sistema social enfermo que procura esgotar nossas capacidades ou, também, os inúmeros fatores que ocorreram ao longo da vida que podem provocar profundas marcas no corpo e na alma se não forem tratados adequadamente e a longo prazo, o que pode ser um alto investimento financeiro. Seja como for, temos que começar a trabalhar com bastante antecedência, pois o que podemos viver durante os processos de envelhecimento do corpo já nos afeta hoje.
O encontro da Boneca Tiān com os anciões
A Boneca Tiān surgiu nos encontros com anciões, em 2018, em Instituições de Longa Permanência para Idosos (ILPs), Centros Dia de Convivência e instituições culturais em São Paulo. Em um primeiro momento, foi apresentada a atividade escrita-desenho, inspirada pela “escrita inventada” de Mirtha Dermisache e pelas obras de Mira Schendel, Cy Twombly e Henri Michaux, entre outros artistas que exploram com liberdade e autenticidade os recursos relacionados à escrita, possibilitando outros modos de expressão que dialogam com o desenho, a pintura e a instalação. São obras que exploram as potencialidades plásticas dos elementos de linguagem como as letras, os símbolos gráficos e as caligrafias, configurando uma investigação sobre a liberdade do gesto ao traçar formas abertas e imprecisas.
A história da arte também passa pela escrita visual por meio dos desenhos rupestres nas cavernas, da escrita cuneiforme na Mesopotâmia, dos hieróglifos egípcios, identificando no ser humano a necessidade de se comunicar através de símbolos que caracterizam determinadas épocas e culturas. O ensino escolar também começa basicamente pela escrita, por meio da qual a criança desenvolve a concentração e a coordenação para realizar os símbolos de forma clara.
A caligrafia chinesa é conhecida como ideograma, que são vetores de luz que expressam conceitos e códigos. A escrita ideográfica é terapêutica, pois harmoniza estados mentais, revigora funções cerebrais e ajuda na regulação metabólica e fisiológica do corpo, possibilitando o resgate do ritmo interior de cada um. Além disso, as formas e expressões criadas revelam a estética particular de cada pessoa e seu modo de comunicação.
A prática da caligrafia e do desenho como elementos terapêuticos também possibilitam a regulação energética e estimulam a memória, a capacidade de associação de ideias, a imaginação e a abstração, favorecendo a criação de novas conexões cerebrais. Além disso, promove um processo de desenvolvimento das pessoas em uma perspectiva artística, sociocultural, assistencial e pedagógica, estimulando as habilidades criativas, melhorando a autoestima e favorecendo a construção da autonomia e segurança pessoal.
Nos encontros com os idosos, a escrita ideográfica é realizada de diversos modos: por meios de exercícios de caligrafia muscular, estimulando a mão esquerda e a direita, com lápis, pincéis e outras ferramentas. Fazemos desenhos pequenos e vamos aumentando até ficarem bem grandes e se expandirem para o espaço físico através de suaves movimentos corporais associados à respiração. Essa prática é conhecida como Qi Gong Li.
Ao juntar e organizar os trabalhos de escrita-desenho, percebi que um corpo começava a aparecer, pois as sequências dos exercícios estavam relacionadas à embriologia energética que se refere ao desenvolvimento do corpo humano, então propus a criação da boneca com eles. Assim surgiu a Boneca Tiān, que significa estelar, em chinês tradicional. Os exercícios de escrita-desenho, que até então não tinham lugar para serem guardados, puderam ser colocados dentro da Boneca Tiān, e outras atividades artesanais foram incorporadas aos encontros, como a costura, o bordado e o tricô, que são bem familiares às idosas. Também pudemos experimentar outras técnicas artísticas e abrir mais espaço para a escuta das histórias dos idosos.
Assim, os participantes são conduzidos a uma viagem pelo corpo à medida que criam as formas e conteúdos que o compõem. Desse modo, eles podem conhecer melhor a própria estrutura física e os mecanismos que colaboram com os equilíbrios e desequilíbrios emocionais.
A tradição oriental relaciona o desenvolvimento da vida e as origens dos desequilíbrios energéticos com a capacidade adaptativa do indivíduo às mudanças sociais e biológicas. Tudo é integrado por meio de uma força vital denominada Qi (traduzida como energia vital, sopro ou prana).
As etapas de desenvolvimento da Boneca conforme a embriologia energética, passam pelos movimentos de expansão e contração da luz, as especializações do Qi e o ciclo geracional dos 5 Reinos Mutantes da Natureza que se referem a:
- Água: que está relacionada com os rins e bexiga, e também com o cabelo, ouvidos e ossos, assim como aos sentimentos de medo e coragem.
- Madeira: fígado e vesícula biliar, que se expandem na visão, nas unhas, músculos, articulações e aos sentimentos de ira e generosidade.
- Fogo: coração e intestino delgado; vasos, veias, semblante da face, a expressão do olhar e com a ansiedade, euforia ou a tristeza.
- Terra: estomago e baço-pâncreas; com a boca, a fáscia, com os pensamentos obsessivos e a preocupação.
- Metal: se relaciona com o pulmão e intestino grosso; com a pele, pelos, nariz e também é expressado pelo sentimento de melancolia.
O número cinco, na tradição oriental clássica, também se converte em um número de referência para os elementos que compõem os Reinos Mutantes: são cinco pontos cardeais (incluindo o centro), cinco estações (com o solstício), cinco sentidos, cinco sabores, cinco cores, cinco emoções, cinco tons musicais (e não sete, como na música ocidental).
Assim, os órgãos do corpo, além das funções biológicas, também armazenam informações sobre os ciclos da natureza, emoções e sentidos, que são evocados durante a confecção dos órgãos da Boneca Tiān. Tudo isso é transformado em conteúdos que são depositados dentro das peças confeccionadas e também orientam a metodologia que parte de procedimentos relacionadas às quatro dimensões do corpo:
- Físico: que corresponde as práticas manuais para a criação das partes do corpo da boneca, externamente (cabeça, tronco e membros) e internamente (órgãos e vísceras), assim como, o desenvolvimento das outras partes do corpo conforme a relação com os Reinos Mutantes;
- Energético: refere-se à escrita dos ideogramas que serão colocados dentro dos órgãos da boneca. A escrita ideogramática também é transmitida por meios de exercícios corporais de Qi Gong Li, respiração e automassagem, com a intenção de mover os fluxos energéticos do corpo de forma suave. Deste modo, à medida que os participantes desenvolvem a boneca, eles também cuidam de si mesmo.
- Mental: acontece nos momentos de escuta para os compartilhamentos de histórias pessoais compreendendo como os acontecimentos externos podem reverberar no corpo da boneca mudando sua expressão.
- Digital: a intenção é manter a conexão entre os participantes e a Boneca Tiān para além dos encontros presenciais. Isso pode acontecer através da criação de grupos em redes sociais ou outros canais de comunicação em rede, visando a inclusão digital dos idosos. Durante os encontros presenciais, também consultamos plataformas on-line, como sites de tradução e dicionários, páginas de anatomia 3D e buscamos referências artísticas relacionadas com os conteúdos apresentados.
A criação da Boneca Tiān também se relaciona com a técnica mnemônica, conhecida como “palácio da memória”, que consiste em estabelecer, ordenar e coletar conteúdo memorial, criando um lugar imaginário, um palácio, que, no caso da Boneca, é o próprio corpo. Assim, o aprendizado acontece de forma associativa e lúdica, articulada a exercícios físicos, energéticos e mentais, estimulando e desenvolvendo a capacidade motora, cognitiva e criativa ao revigorar as funções cerebrais.
A boneca, que acompanha o homem há milênios, está presente em quase todas as civilizações e também faz parte dos universos da magia, da fantasia, da arte e da religiosidade.
Originalmente, a boneca era usada somente por sacerdotes, feiticeiros e curandeiros, que utilizavam as bonecas em cerimônias para a cura e para fazer o bem à comunidade. Diversas culturas utilizam a magia com bonecas para atrair sorte, prosperidade e fertilidade. A Revolução Industrial no século XVIII abriu o mercado para a produção de bonecas em larga escala e ela passou a ocupar um lugar importante na vida de todos, mas ao mesmo tempo, deixaram de ser confecionadas e manipuladas ritualisticamente e com a intenção de curar. Mas, educadores, filósofos e psicólogos desenvolveram diferentes métodos terapêuticos utilizando bonecas, pois observaram que as crianças expressavam seu estado emocional através da manipulação de brinquedos.
Por questões culturais, pode parecer que fazer uma boneca seja uma atividade exclusiva das mulheres, mas isso é uma construção social patriarcal e machista. Proporcionar essa atividade para o público masculino também tem o intuito de romper com essas questões morais e preconceitos, ao trazer o entendimento de que isso é uma prática relacionada ao autocuidado e à manutenção da vida, não sendo uma tarefa exclusivamente feminina, e, sim, um compromisso e uma responsabilidade de todas as pessoas com cada um e consigo mesma.
Além disso, fazer uma boneca não é uma brincadeira em vão ou um mero passatempo que infantiliza os adultos ou os idosos (como se isso fosse algo depreciativo). A abordagem teórica fundamentada pela medicina chinesa aliada as diversas técnicas artísticas e corporais, favorecem a articulação de questões muito complexas. Estes conhecimentos transmitidos de forma lúdica, integrando os sentidos, os sentimentos e a cognição, proporcionam profundos benefícios a saúde. O intuito deste trabalho é oferecer uma vivência que dialogue com a estrutura corporal, com os diversos aspectos coletivos da existência humana e as subjetividades individuais na contemporaneidade.
O objetivo da Boneca Tiān também consiste em colocar o foco na expressão autêntica dos indivíduos e oferecer ferramentas de prevenção, através da valorização da vida e do bem-estar. O caráter pedagógico da Boneca Tiān também diz respeito a despertar as potencialidades de cada um, para que possam enfrentar adversidades com mais vitalidade, confiança e autenticidade. Os resultados geram mudanças e percepções que operam na capacidade criativa das pessoas, melhorando a qualidade de vida ao possibilitar o conhecimento aprofundado sobre as camadas do corpo associadas às emoções, aos ciclos da natureza e ao cosmo.
A carga horária e as dinâmicas de aulas podem ser adequadas ao perfil dos participantes e as necessidades do local. A proposta também pode ser adaptada para todas as idades e para pessoas que estão passando por diferentes processos de enfermidades ou que apresentam algum tipo de limitação. Também é destinada a pessoas que estão buscando autoconhecimento e processos de consciência, bem como, a profissionais da área da saúde, estudantes de medicina, artistas que trabalham com práticas de cuidado e autocuidado. Trata-se de uma atividade terapêutica preventiva que auxilia nos processos de autocuidado e longevidade.
O surgimento das bonecas Amarela, Branca e Vermelha
A primeira Boneca que surgiu foi a Amarela, a partir de uma prática coletiva em três casas de repouso na Zona Norte de São Paulo, no período de março a dezembro de 2018. No final do processo, quando todas as partes já estavam formadas, veio a novidade: ela estava grávida! Em 2019, junto aos idosos que participam do programa social da Fundação Britânica de Beneficência, nasceu a Boneca Branca, no dia de São Jorge. Ela foi feita de forma coletiva, e os desenhos de todos também foram arquivados em seu interior, juntamente com fichas didáticas e outros objetos coletados ao longo da atividade.
Em meados de 2019, a Boneca começou a se multiplicar nos encontros que aconteceram no Sesc Florêncio de Abreu. Dessa vez, cada participante pôde confeccionar a sua própria Boneca. Foi então que surgiram outras diversidades: uma negra, uma punk, uma zen e uma xamã, esta última tendo se configurado como a Boneca Vermelha.
A primeira escritura antiga e ainda utilizada pela medicina oriental é o Tratado de medicina interna do Imperador Amarelo, também conhecido como Neijing. Segundo alguns pesquisadores, foi escrito entre 475-221 a.C. É apresentado na forma de diálogo entre o mítico Imperador Amarelo, Huang Di, e seu ministro, Qi Bo, sobre os assuntos da medicina que constituem o núcleo do funcionamento dos seres humanos, no que diz respeito à regulação e equilíbrio das funções corporais face à provocação de fatores externos como frio, calor, umidade e vento, ou também de fatores emocionais, psíquicos e nutricionais. Os movimentos da natureza são descritos pelo Imperador Branco, conhecido como Fu Shi, através do I Ching, e o conhecimento das plantas pelo Imperador Vermelho, Shen Nong.
Assim, quando as três primeiras Bonecas foram concluídas, percebi que se configuraram espontaneamente nas mesmas cores e funções dos imperadores míticos chineses tradicionais, mas, dessa vez, na forma feminina, as imperatrizes místicas, apresentando elementos de uma China globalizada. Mas seja como for, a generosidade dos imperadores e imperatrizes está em mostrar os movimentos da natureza, a essência das plantas e as belezas do corpo físico e energético, que está entre o Céu e a Terra.
Referências bibliográficas
AGUIAR, Ana Moraes; BARRIOS, Nancy; MAGNOU, Claudia. La escucha amplificada: necessidades das espécies. VII Congreso de Inspiración Femenina, Punta Cana, 2017.
BRASIL. Casa Civil. Estatuto do Idoso. Lei nº 10.741, de 1º de outubro de 2003. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/l10.741.htm. Acesso em: 21 jan. 2021.
CORRAL, José Luis Padilla. Sanarte. Cuenca: Escuela Neijing, 2002.
DECLARAÇÃO DE FRIBURGO. Disponível em: https://www.joinville.sc.gov.br/wp-content/uploads/2017/09/Direitos-Culturais-Declara%C3%A7%C3%A3o-de-Friburgo.pdf. Acesso em: 21 jan. 2023.
KRENAK, Ailton. Futuro ancestral. São Paulo: Companhia das letras, 2022.
[1] Mestre em artes visuais (FASM) e bacharel em artes plásticas (FAAP). Também cursou psicologia analítica (Junguiana), medicina tradicional chinesa e respiração consciente. Foi docente em universidades (FAAP, UniSantanna, FMU e Senac), em cursos técnicos, graduação e pós-graduação. Realizou oficinas, palestras e workshops em instituições culturais especialmente para o público idoso. Participou de exposições, premiações e residências artísticas, nacionais e internacionais. Email: agassidenise@gmail.com
[2] O trabalho “La escucha amplificada: necesidades de las especies” foi realizado em um residencial para idosos e apresentado no VII Congreso de Inspiración Femenina, em Porto Rico, em 2017.
[3] Projeto Vamos além, de Denise Agassi e Yara Toscano, que é atriz e diretora de teatro. Partimos da experiência com idosos em ILPIs privadas e Centros de Convivências (conhecidos como Day Care). Nosso maior desafio foi criar caminhos de realização da humanidade através da arte, valorizando a potência dos moradores e desconstruindo ideias preconcebidas.
[4] Foi elaborado, em 2007, um documento intitulado Declaração de Friburgo sobre Direitos Culturais pelo Grupo de Friburgo organizado a partir do Instituto Interdisciplinar de Ética e Direitos Humanos da Universidade de Friburgo, na Suíça, juntamente com a Organização Internacional de Francofonia e a Unesco.